Monday, April 03, 2006

Alipístico

Cresci ouvindo que minha avó paterna era uma víbora, que meu pai era um canalha, que meu tio era o mais simpático, que minha tia já falecida era boa pessoa, no entanto jamais ouvi algo sobre o patriarca. Corcunda, ranzinza, banguela, cabelos brancos, chapéu, alpercatas, camisas de linho; se era assim ou não jamais soube por outras pessoas. Descobria ao chegar em sua casa, mas nas férias seguintes lembrava-me que já havia esquecido tudo e precisava observar de novo. Seu Alípio, tio Alípio, vô Alípio, sempre assim.
Alípio de olhos azuis, ralos cabelos brancos, bengala, forte, sorriso constante, do boné de modelo antigo. Gracioso, piadista, voz grave enrouquecida pelo tempo, chinelo e sono, muito sono. Do andar de baixo pra rede, da rede pro almoço, do almoço pra se perder nos braços de Morpheu. Não lhe ouvi roncar, nem reclamar de nada. Aprecia bacaba, a casa da Tatá, os sobrinhos que velhos já vão ficando, os poucos netos e viajar.
Abraçava-me chamando-me de Thayse. Eu explicava, sempre, sem exaustão, que era filha do Amaury e não do Aurimar. Ele entendia, mas nas férias seguintes confundia-se novamente. Sempre soube minha idade melhor que meu pai, único que faz-me rir no casarão velho do Jurunas.
Quando morrer, provavelmente saberei só um tempo depois. Talvez não chore, apenas sinta sua ausência sutil e peculiar.
Parece que descobri um pouco tarde que sou neta de Alípio.

3 comments:

Anonymous said...

... linduu ...
como sempre jeito de renata de ser ... sempre observadora consegue transformar fatos cotidianos em lindas cenas de cinema!!

bjuu rêe
máaaa

Anonymous said...

Adorei oq ue você escreveu. Lembrou uma tia avó que me foi apresentada, mas no fim também me esqueceu!

Anonymous said...

são as peças que a vida prega em nós...