Tuesday, April 25, 2006

Liza,

Vê se dessa vez presta atenção! Embarcarei no trem das 19h, que me levará até Jundiaí. De lá pego um carro e vou até Santos, onde um navio com destino à Europa está me esperando. Partimos na sexta, sem data para a volta. Se você estiver se perguntando por que não fui direto de trem até o porto, é sinal de que ainda não encontrou seu espírito aventureiro.
Avise mamãe que não fui eu quem comeu a última porção de broa (e que trago, se ela quiser, mil vezes mais das melhores broas italianas); diga ao Pelé que quando voltar jogo aquela pelada que fiquei devendo e guarde o baralho francês do papai na caixa amarela de papelão (embaixo da cama, no lado esquerdo e , de preferência, antes que ele sinta falta). Aquela calça pendurada no varal é do bilac. B-I-LA-C! Não do Rangel!
Enfim, cuide de todos, lembre de mim sempre com carinho, sempre como o irmão amoroso e atencioso de todos os momentos.

Galhardo
PS – Ah! Se sentirem minha ausência, diga que fui dar uma volta.

Friday, April 14, 2006

Ame-me, bastardo.

As vagabundas levantaram com vontade de dar as bundas. Gratuitas, a quem quiser, com rum e licor. Os malandros viram a mesa da jogatina com fúria, desprezo, raça. Os homens dementes de decência apenas tomam um cappuccino, observando os traseiros graciosos dos garçons. A criança teima com um sorvete de mabé, embora a avó diga que não pode.
Hoje todos têm direito de dizer e levar um foda-se para casa. Um foda-se vale mais que mil palavras.
Lambuzaram-se com o rum das vagabundas os malandros, porque elas lhes pertenciam.
Acabaram com a tinta da caneta de $40 dólares os senhores da decência ao quererem deixar um guardanapo com 8 dígitos escritos no bolso do garçom.
Chorou até doerem os pulmões a criança, sem perceber que os olhos da avó também se derramavam em doídas lágrimas por não entender como mabé só pioraria o câncer daquele anjo insano de cisma.
Corra e não se deixe para trás.

Monday, April 03, 2006

Alipístico

Cresci ouvindo que minha avó paterna era uma víbora, que meu pai era um canalha, que meu tio era o mais simpático, que minha tia já falecida era boa pessoa, no entanto jamais ouvi algo sobre o patriarca. Corcunda, ranzinza, banguela, cabelos brancos, chapéu, alpercatas, camisas de linho; se era assim ou não jamais soube por outras pessoas. Descobria ao chegar em sua casa, mas nas férias seguintes lembrava-me que já havia esquecido tudo e precisava observar de novo. Seu Alípio, tio Alípio, vô Alípio, sempre assim.
Alípio de olhos azuis, ralos cabelos brancos, bengala, forte, sorriso constante, do boné de modelo antigo. Gracioso, piadista, voz grave enrouquecida pelo tempo, chinelo e sono, muito sono. Do andar de baixo pra rede, da rede pro almoço, do almoço pra se perder nos braços de Morpheu. Não lhe ouvi roncar, nem reclamar de nada. Aprecia bacaba, a casa da Tatá, os sobrinhos que velhos já vão ficando, os poucos netos e viajar.
Abraçava-me chamando-me de Thayse. Eu explicava, sempre, sem exaustão, que era filha do Amaury e não do Aurimar. Ele entendia, mas nas férias seguintes confundia-se novamente. Sempre soube minha idade melhor que meu pai, único que faz-me rir no casarão velho do Jurunas.
Quando morrer, provavelmente saberei só um tempo depois. Talvez não chore, apenas sinta sua ausência sutil e peculiar.
Parece que descobri um pouco tarde que sou neta de Alípio.